O Leitor

Ao nos depararmos com histórias como a contada pelo filme O Leitor (The Reader / 2008), adaptação do best seller do alemão Bernhard Schlink, não há como não sentir emoções desencontradas. O escritor, nascido em 1944, quase no fim da II Guerra Mundial, cresceu permeado pelas auguras da herança deixada pelo nazismo, vivendo numa Alemanha que tentava sobreviver à culpa coletiva pós-Holocausto.
Bernhard também expõe a dolorida tarefa de ver pessoas próximas, às quais jamais se delegaria a autoria de crueldades, serem apontadas como funcionários do Holocausto, adeptos do III Reich, informantes da Gestapo.
É justamente a proximidade, o conhecimento do indivíduo, e não o contexto geral e o olhar distante, que faz de O Leitor um exercício de questionamento; a contemplação das culpas e também da incapacidade de compreender completamente o que leva um ser humano a tirar a vida de outro, seja como autor do feito ou aquele que, silenciosamente, guarda os portões da masmorra, cumprindo seu dever como bom funcionário que é.O filme, dirigido por Stephen Daldry, começa com o encontro entre Michael Berg, um garoto de 15 anos de idade, e Hanna Schmitz, uma mulher bem mais velha, que o ajuda a chegar em casa quando ele passa mal. Hanna é uma mulher dura, que cumpre suas funções e sobrevive. Nas primeiras cenas, vê-se logo que a sua eloqüência emocional se restringe ao que lhe provocam as histórias lidas por Michael, num ritual que precede o sexo, como fosse desfecho para as tramas sorvidas das páginas dos livros. O romance entre eles dura pouco e termina com Hanna partindo sem sequer se despedir de Michael.
Anos depois, Michael e Hanna estão no mesmo tribunal, ele como estudante de direito e ela sendo julgada por ter trabalhado para a SS, organização paramilitar ligada ao partido nazista alemão. Durante o julgamento, Michael não só reencontra seu passado, como também é obrigado a encarar o fato de que aquela mulher sendo julgada por crimes tão bárbaros, e que na sua consciência cultiva a certeza de ter apenas cumprido seu dever de funcionária da SS, é a mesma a quem rendeu seus afetos. E também compreende, observando o passado naquele momento, que Hanna não sabe ler, que se envergonha disso. E a incapacidade de assumir isso é o que a leva à condenação como autora de todos os crimes ali julgados.O fato de Michael respeitar a escolha de Hanna de manter este segredo, não diminui o impacto que essa mulher, com sua história, provoca na vida dele, perpetuando-se a sensação de desconserto durante os vinte anos que Hanna passa na prisão.
O Leitor foi muito bem construído. Kate Winslet está impecável vivendo as duas fases de Hanna Schmitz. David Kross soube dar o tom certo de excitação ao jovem Michael Berg quando conhece Hanna, assim como explorar a melancolia que se instala em sua alma, quando a encontra naquele tribunal. Ralph Fiennes, que já nos provoca normalmente a sensação de estar mergulhado em si, construiu um Michael adulto e incapaz de se aproximar emocionalmente de sua filha. E é ele quem nos conduz ao desfecho dessa trama, emocionando-nos em seu encontro com uma das sobreviventes do Holocausto, interpretada por Lena Olin, quem também interpreta a mãe dessa personagem, na ocasião do julgamento.Quem for ao cinema conferir O Leitor que se prepare para enfrentar, mais uma vez, o que teimamos em não aceitar: ninguém é capaz de conhecer profundamente o outro e, às vezes, a parte que nos cabe conhecer jamais definirá aquela que não fomos - e jamais seremos - capazes de decifrar.
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