A poesia melancólica e reveladora de O quarto de Jack

Cena do filme O quarto de Jack | Foto © George Kraychyk

Eu sei que a maioria de vocês já assistiu ao filme e foi há um bom tempo. Ele foi lançado em 2015. Talvez, muitos de vocês não se lembrem claramente do filme, o que é justificável, já que há muita coisa acontecendo e estamos todos ligados a elas: cinema, questões pessoais, música, trabalho, literatura, injustiças, fotografia, violência, artes plásticas, telejornal, celebrações, memes, superações, perdas e por aí vai.

Desde seu lançamento, eu vinha evitando me encontrar com esse filme. Não é raro acontecer de eu me demorar em um desejo. Na verdade, sempre que me demoro em um desejo, é porque algo me diz que esse tempo é uma espera que tem seu valor. Raramente eu me engano nesse aspecto. 

O quarto de Jack (Room) é um daqueles filmes em que a tristeza profunda é de beleza insana. Quando uma ação horrível é encarada da melhor forma possível e essa forma é dura, porém poética, o que me faz lembrar de um amigo que me confessou não gostar de poesia. 

Eu conheço muitas pessoas que não gostam de poesia. Não tenho problema algum com quem não gosta de poesia, apesar de ela ser uma constante na minha vida e na minha história. Porém, sempre me pergunto como essas pessoas reconhecem a poesia da vida, a que não está registrada em livros, que não sai da boca de criadores, durante um sarau. A poesia que é de autoria da vida e se constrói com o tempo e as escolhas de cada um.


Dirigido por Lincoln Abrahamson, com roteiro baseado no livro de Emma Donoghue e escrito pela própria autora, o filme conta a história de Jack, um menino que nasceu e viveu cinco anos em um quarto, tendo como única visão do exterior o céu enquadrado em uma claraboia. A mãe, sequestrada aos dezessete anos de idade, vivendo à mercê do desejo do seu sequestrador há sete, cria um universo para o filho naquele pequeno espaço, enquanto lida com o desespero de ter como sina uma vida restrita a um quarto, à violência que ela sofre a cada dia e a uma criança que ela não sabe se verá o mundo real.

A cadência do filme leva o espectador a mergulhar na narrativa de Jack sobre o mundo em que ele vive. Neste momento, a poesia se apodera das cenas por meio das palavras. A visão de mundo do menino, idealizada a partir dos relatos da mãe sobre ele, é revelada durante cenas sobre a rotina deles. Não há como o espectador passar incólume a esses relatos. Não há como o espectador que, diferente de Jack, conhece o mundo e suas mazelas, não se encantar com a maneira que o menino enxerga a vida, o mundo, a própria existência.

Cena do filme O quarto de Jack

Jacob Tremblay me fez acreditar em Jack e embarcar em seu imaginário. O ator tem outro filme complexo na sua filmografia, Extraordinário (Wonder/2017), no qual interpreta Auggie, personagem com a difícil missão de encarar um novo universo, o da escola, sendo uma criança com uma deformidade facial. Brie Larson é uma atriz com uma filmografia variada, protagonista do filme Capitã Marvel (Captain Marvel/2019). Dos filmes que mais gosto, lembro-me de sua participação em O maravilhoso agora (The Spectacular Now/2013). Em O quarto de Jack, Larson interpreta Ma, a mãe de Jack. Ela dá força a uma personagem fragilizada pela violência que sofre, pelo cativeiro, pela responsabilidade de cuidar de seu filho que vive à mercê do algoz dela, pai de seu filho. Ela torna a dor e a solidão que sente em algo quase palpável. Tremblay e Larson tornam este um filme memorável.

Este filme pode servir de metáfora para prisões particulares, violência velada, privação do direito de estar no mundo, de existir nele. Antes disso, ele é um filme sobre uma mulher mantida em cativeiro, que sobrevive a quem a mantém em cativeiro, que tem um filho em cativeiro, que sobrevive ao cativeiro e supera seu algoz a ponto de alcançar a liberdade. Quando ela chega, a liberdade, essa mulher tem uma imensa dificuldade de se ajustar à realidade para a qual volta. O filho dela tem de conhecer o mundo no qual nunca esteve. Ele tem de aceitar que aquele mundo que ele conheceu, resumido ao quarto onde nasceu e cresceu, é mais, é diferente, é outro.

O quarto de Jack é a poesia melancólica e reveladora, porque leva o espectador a confrontar a certeza de que tem controle sobre tudo que lhe cabe. Porque, para sobrevivermos aos riscos que viver impõe, temos de acreditar que aquilo nunca acontecerá conosco. 


O quarto de Jack | Trailer

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