Do vinho ao escrito


Neste ano, recebi um convite para redigir textos de duas sessões do site A Lenda Portuguesa, vinho de origem portuguesa, que já começou sua história aqui no Brasil. Aceitei, com a maior felicidade, porque foi meu primeiro trabalho oficial como redatora, depois de eu decidir que esse era um caminho que eu gostaria de seguir. E porque pediram para eu ser algo que, geralmente, não se permite ser em textos comerciais. Liberaram a poesia. Mais do que isso, pediram por ela.

Ao começar a trabalhar na pesquisa para elaborar aqueles textos, eu entendi a necessidade da poesia. Peguei-me completamente apaixonada pela linguagem usada para descrever as regiões do Alentejo e do Minho, onde esses vinhos são criados, feito obra de arte mesmo. São tantas etapas que pedem por um cuidado que se dedica somente ao que é trazido à vida para celebrar deleite e acompanhar histórias.

Pense na bebida como um condutor de longas conversas. O café tem feito esse papel, na minha rotina. Porém, o vinho também está presente, que sempre fui apreciadora. E a presença dele é tão marcante, que muitos dos meus personagens literários se valem do vinho como companhia em momentos de deleite, catarse ou de reflexão. 

Obviamente, eu experimentei alguns itens da carta de vinhos dessa marca e adorei. Esse trabalho com A Lenda Portuguesa me fez olhar para Portugal de uma maneira diferente, levando-me a desejar conhecer Portugal, como nunca antes desejei conhecer outro lugar. Assim, redescobri o prazer de apreciar um bom vinho e ainda mais ao Português de Portugal. Meu apreço pela Língua Portuguesa aumentou.

Outro detalhe tornou essa viagem bem agradável. É que eu sempre fico muito feliz quando alguém se apaixona por um projeto, não importa qual, obviamente, desde que seja algo bom. Criar e circular A Lenda Portuguesa aqui no Brasil é projeto desses que nascem de um apaixonamento. Eu gosto disso e desejo que o negócio seja próspero, que muitos brasileiros brindem aos seus feitos e afetos com A Lenda Portuguesa.

Eu sei, já entreguei o trabalho de redatora. Porém, ele me rendeu outra coisa, que desejo compartilhar com vocês. Eu gostei muito dos adjetivos usados para descrever os vinhos. Na verdade, para mim, esse projeto foi um ótimo encontro com o idioma. Então, como sempre acontece quando me aproximo de um tema que me fisga, escrevi quatro minicontos usando alguns dos adjetivos de descrição dos vinhos. Venho trabalhando em um livro de minicontos, há algum tempo. Meu encontro com A Lenda Portuguesa me ajudou a criar alguns deles.

Eu disse... meus personagens amam vinho. Eu também.



A PARTIDA

(Inspirado por alguns adjetivos colhidos do Vinho Verde D.O.C. Branco, A Lenda Portuguesa)

O vestido encomendado, com todo zelo de quem deseja com o desejo profundo, e ainda assim, lida graciosamente com a espera. Tecido leve, de cor citrina, vestindo o corpo dela com realização. Ela sabe que tudo irá se misturar: o aroma fresco da mudança escolhida, o elegante partir de quem já não sabe mais permanecer, os devaneios tropicais que vão além de matar a fome com frutas cítricas. Encara as conversas com despedidas necessárias, porém disfarçadas pela acidez equilibrada dos diálogos histriônicos que dão sabor ao acontecimento. Vento refrescante chega junto com a saudade antecipada. Um bom gole de vinho ameniza o pânico que a assalta. Aprecia um final de boca harmonioso, como se ele fosse capaz de definir próximos sabores de vida... longos. Parte sem dizer adeus. Os convidados continuam suas conversas, suas celebrações. Ela é da casta dos que partem sem dizer adeus, quando a partida significa recomeço.


COISAS DE SAUDADE
(Inspirado por alguns adjetivos colhidos do Vinho Branco DOC, A Lenda Portuguesa)

Gosta de longos passeios noturnos, em tempo fresco, depois de uma taça de vinho de aroma frutado. Contempla a cidade e seus cenários gastronômicos e tragicômicos, salpicados de abandonos diversos: românticos, semânticos, musicais. Sente saudade das noites como espectador de shows acontecidos em espaços quase totalmente ignorados. Pequenos lugares, escondidos e raros. Sente saudade dos sucos misteriosos, com aquela marcante nota citrina e infernalmente deliciosos, obras da violinista de uma banda da casa de um desses lugares, nos quais ele não coloca os pés há tempos. Sempre a achou meio bruxa: o tênue - ainda que marcante - brilho no olhar equilibrado por devaneios. Como se movimentava pelo palco, possuída pela música. Sente saudade da presença dela, por isso evita tais lugares. Ela desapareceu, deixando as lembranças que ele repassa, durante seus passeios noturnos. A cor palha da pele da noite enfeita a rua com seu tom de saudade anoitecida. Noite dessas, ele não voltará para casa.


ABANDONO
(Inspirado por alguns adjetivos colhidos do Vinho Verde Rosé, A Lenda Portuguesa)

Colheita manual, de quando é preciso tocar para sentir de fato. Na mão, o bilhete que não consegue ler de pronto. Notas mentais de ausência: hoje a vida vai ficar mais complicada. Velas aromáticas, não gosta. Mesa posta: groselha, frutas vermelhas e compota. Necessidade indecente de dulçor. Respira fundo: como alguém consegue viver entre quatro paredes cor rubi? Sobrancelha arqueada, repensa: é rubi clara, até que bonita. Bonita, mas diferente da beleza que costuma apreciar, os sentidos em êxtase. Talvez por isso o engasgo na apreciação. É quase harmonioso, como pode? Abre a boca para dizer, mas escolhe se calar. Dizer para quem? As cortinas atrapalhadas em uma coreografia de vento que as acolhe. A acidez da verdade desfila pela sua percepção, sentindo-se fantástica ao trazer de par a sua nada equilibrada interferência. Como será, então? Como seremos? O vazio parece refrescante, sempre pensou que abandono pesasse ao ter de senti-lo. Por que o alívio? A cor bonita, até é que bonita.


BAILARINA
(Inspirado por alguns adjetivos colhidos do Vinho Tinto D.O.C Alentejo, A Lenda Portuguesa)

Pai pede: não sonhe exagerado, é arriscado. Que tal passar com tranquilidade pelo mundo? Ela sorri macio e se nega a atendê-lo. Logo cedo, mostrou-se curiosa sobre tudo o que leva ao movimento. A inquietude dela preocupa os pais, incomoda os irmãos, agonia os avós. Tornou-se a melhor bailarina da escola de dança do bairro. Sempre que borrifa no corpo o perfume de frutas vermelhas, coloca a faixa encorpada nos cabelos, enfia-se  no tutu cor vermelha granada - presente da tia, que ela acha que tem mais de duzentos anos -,  sente-se pronta para movimentos suaves, resultado da persistente necessidade de resistir à facilidade de desistir. Para o pai, ela é a prova de que a vida pode ser bem complexa e não se refere à alergia dela ao cacau. Não a entende, mesmo quando tudo o que ela precisa é de colo. A mãe sabe: se é assim aos sete anos de idade, a menina vai virar o mundo ao avesso, quando não puder mais chamar professora de “tia”. Suspiram os pais, os irmãos e os avós. E a menina? Sorri.

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